É justificável a necessidade de resultados com modelos animais em revistas científicas quando métodos alternativos podem ser apropriados e suficientes?
Queridos leitores,
Na quarta edição da nossa newsletter, trazemos uma discussão que tem impactado a publicação de trabalhos científicos. Recentemente, pesquisadores do Physicians Committee for Responsible Medicine e da Humane Society International Europe lançaram luz sobre o que chamaram de ‘viés de métodos animais’ na publicação científica.
Mas afinal, o que seria esse viés? Ele ocorre quando a probabilidade de um estudo ser publicado é afetada pelos métodos utilizados, neste caso, métodos baseados em animais ou não. O artigo, intitulado ‘A Survey to Assess Animal Methods Bias in Scientific Publishing’, foi publicado na ALTEX este ano por Catharine E. Krebs e colaboradores, destacando uma preferência de alguns periódicos por estudos baseados em animais, mesmo quando métodos alternativos podem ser apropriados e suficientes. Um desafio ético enfrentado para a publicação de trabalhos com métodos não animais.
Apesar de algumas limitações desta pesquisa, que foram devidamente detalhadas no artigo, ela destaca a necessidade urgente de uma reflexão mais profunda sobre a supervalorização dos métodos animais na comunidade científica. Diante desse cenário, em várias situações, alguns pesquisadores conduziram experimentos com animais apenas para antecipar solicitações de revisores, sem uma necessidade real. Enquanto outros incorporaram posteriormente dados experimentais em animais a estudos não animais, devido às solicitações dos revisores. Ambas as situações levantam questionamentos éticos sobre essa prática.
Na pesquisa biomédica, testemunhamos uma transição notável na virada do século, em que a validação de resultados in vitro frequentemente dependia de dados experimentais de estudos em animais, resultando em uma exigência por parte dos revisores. Entretanto, à medida que uma tecnologia promissora emerge desafiando essa tendência, os ‘Organ-on-chips’ (OoCs), um novo contexto científico se delineia. Surge a dúvida sobre a necessidade contínua de modelos animais, considerando a capacidade dos OoCs em superar os modelos tradicionais em diversos aspectos, especialmente em termos de flexibilidade, relevância fisiológica e capacidade de reproduzir estados de doença. Isso levanta questionamentos sobre a validade contemporânea da insistência em modelos animais na pesquisa biomédica. Este é um passo significativo em direção a práticas mais éticas e métodos mais eficazes na busca por avanços médicos.
Faço referência ainda ao artigo escrito por Donald Ingber, também citado no trabalho de Catharine E. Krebs, ‘Is it Time for Reviewer 3 to Request Human Organ Chip Experiments Instead of Animal Validation Studies?’ que discute esse novo contexto.
Sempre buscamos compartilhar essas informações em nossas redes e nos cursos oferecidos pelo BCRJ. Os métodos não baseados em animais têm avançado significativamente, incorporando modelos de cultura 3D, microfluídica, bioimpressão, entre outras abordagens modernas que reproduzem com fidelidade os mecanismos moleculares, celulares e fisiológicos dos tecidos humanos. Notavelmente, a comunidade científica já testemunhou a aceitação, pelo FDA, de um modelo de organ-on-chip para estudos clínicos de doenças raras, como a patologia da polineuropatia desmielinizante inflamatória crônica e da neuropatia motora multifocal. Importante ressaltar que esses modelos são capazes de simular a patologia dessas doenças, algo que não pode ser replicado em roedores ou primatas.
O trabalho de Catharine E. Krebs é um passo importante para entender e enfrentar esse desafio do viés de métodos animais nas publicações. No cenário atual, estamos testemunhando mudanças positivas na academia, indústria e no âmbito regulatório. Leia o trabalho na íntegra, nele você verá detalhes sobre o questionário elaborado e os resultados, revelando os desafios enfrentados pelos pesquisadores para publicar trabalhos sem a necessidade de testes em animais.
Link para o artigo: https://www.altex.org/index.php/altex/article/view/2568
Encerramos com uma reflexão: embora a pesquisa com animais de laboratório permaneça vigente, torna-se cada vez mais imperativo abordar criticamente o viés na publicação de métodos animais na ciência. Diante da possibilidade de métodos alternativos apropriados e suficientes, questionamos a legitimidade da persistente exigência por modelos animais em revistas científicas, mesmo quando desnecessários. Ao contemplar o futuro, comprometemo-nos a desafiar ativamente nossas práticas, fomentar métodos inovadores e assegurar que o avanço científico seja guiado pela ética.
Esperamos que esta newsletter estimule reflexões e debates importantes sobre o papel dos animais na ciência e o viés associado à sua utilização
Referências:
D. E. Ingber, Is it Time for Reviewer 3 to Request Human Organ Chip Experiments Instead of Animal Validation Studies?. Adv. Sci. 2020, 7, 2002030. https://doi.org/10.1002/advs.202002030
Krebs, C. E., Lam, A., McCarthy, J., Constantino, H. and Sullivan, K. (2023) “A survey to assess animal methods bias in scientific publishing”, ALTEX – Alternatives to animal experimentation, 40(4), pp. 665–676. doi: 10.14573/altex.2210212.
RUMSEY, J. W. et al. Classical Complement Pathway Inhibition in a “Human-On-A-Chip” Model of Autoimmune Demyelinating Neuropathies. Advanced Therapeutics, v. 5, n. 6, p. 1–13, 2022.